O meu gato Sabichão
Era uma vez… o gato Sabichão. Sabichão de nome mas com muita sabedoria
também.
Sabichão foi o meu primeiro gato. O primeiro de muitos, pois foi graças
a ele que eu me apaixonei por estes seres peludos, ronronantes e muito
inteligentes.
Quem diz que os gatos são independentes, traiçoeiros e que não gostam
do dono é porque nunca viveram com um. Gatos são enigmáticos, místicos,
telepáticos, sensíveis, sensitivos, leais, determinados, sedutores, amáveis, protetores,
… e não vou continuar porque nunca iria conseguir elogiar suficientemente,
estes seres maravilhosos.
Mas vamos conhecer a história do Sabichão:
Foi numa tarde de sábado que ouvi um miar tão delicado que pensei que
fosse de um gato bebe! Procurei por trás do muro de pedra mas não encontrei
nada! Vasculhei todos os recantos entre vasos de fetos e as plantas da minha
avó mas não encontrei nenhum gato. Passados alguns minutos voltei a ouvir o tal
miado. Mas onde estará o gato? A curiosidade foi mais forte que eu deixei os
meus brinquedos e passei a tarde toda a procurar o gato. Mas em vão! Não
encontrei o dono daquele miar tão doce e delicado. Que cor teria o seu pelo?
Com aquela vozinha só podia ser uma gatinha jovem ou bebe! Queria tanto ter um
gato. São tão fofos! Mas a minha mãe e a minha avó não iriam permitir.
Vou pedir à minha avó:
- “Vó”, anda um gatinho a miar aqui perto. Posso ficar com ele?
Posso?!
Qual foi o meu espanto quando a minha avó respondeu:
- Aquele gato preto e grande que anda aí?! Deve andar cheio de fome,
coitado. Tentei-lhe dar de comer mas ele foge de mim. Já é burro velho mas dava
jeito para apanhar uns ratos.
Fiquei chocada e alegre ao mesmo tempo. A minha avó não se importava
que eu ficasse com o gato e já tinha uma aliada para convencer a minha mãe,
mas…estaríamos a falar do mesmo gato? Aquela voz doce e suave seria do…”burro
velho”? Mas também não importava. Eu ia ter um gato, novo ou velho, era um gato
e já ia ter com quem brincar depois de chegar da escola.
Mas como iria conquistar o gato? A minha avó disse que ele fugia dela,
então também iria fugir de mim. Tinha que ser paciente e iria conseguir
conquistar o gato. Ele precisava de comida e eu precisava de um amigo.
Esperei que anoitecesse e como era uma noite de verão estava uma
temperatura agradável para estar fora de casa. Deitei-me na eira da casa velha
e fiquei a ver as estrelas. Ouvia os grilos, as cigarras e as rãs a poucos
metros de mim. O chão ainda estava quente e…que sono.
Quase adormecia!
-Miau, miau.
Estaria a sonhar? Estava a ouvir o miar do gato! Mas onde estaria ele?
Levantei-me num salto e vi uns enormes olhos que brilhavam no escuro. Não via o
gato. Só via aqueles olhos fixos em mim.
- Bxbxbx, gatinho anda cá. Bxbxbxbx.
E foi neste momento que a minha vida mudou. Um enorme gato de um pelo brilhante
e preto aproximou-se de mim e deu-me uma torrinha. O reflexo do seu pelo na luz
da lua cheia, transportou-me para um ambiente mágico. Não parecia um gato real
e parecia-me tão grande! Eu senti que ele estava ali para ser o meu amigo e
protetor. Não precisamos de mais nada e a nossa amizade foi selada com um
olhar. Dei-lhe os restos de carne que tinha guardado do jantar com a esperança
que ele aparecesse e devorou-os como se já não comesse há semanas!
Peguei nele e apertou-se contra mim, como se estivesse a agarrar-se
para salvar a vida e ficamos ali por horas como se o mundo também fosse acabar.
Entretanto o meu pai veio chamar-me para ir para a cama. O gatinho
ficou lá mas eu sabia que não mais iria embora. Eramos amigos inseparáveis.
Antes de me deitar ainda estive a arrumar os meus brinquedos mas já só
pensava no meu novo amigo. Que nome dar ao gatinho (gatão)? Estava a fechar a
caixa do meu jogo preferido e o nome lá estava em letras garrafais na caixa do
meu jogo: SABICHÃO. Ora nem mais, então ele não era mesmo um gatão com ar de
sabichão?!
Sabichão acabou por ser adotado pela minha família mas, num ambiente
rural na década de 1970, os gatos ainda viviam fora de casa. Eu não achava
justo mas antes ter um gato no pátio do que não ter nenhum. Mas o Sabichão
sabia bem viver a vida e era tão inteligente que sabia exatamente quais os dias
que eu não ia à escola. Nesses dias, subia pela ramada de videiras que cobria o
pátio da frente da casa e batia nos vidros da janela do meu quarto. Eu abria a
janela e, sem que ninguém o visse, ele vinha para a minha cama e passávamos toda
a manhã a dormir enroscados. Uhm! Como era bom aquele ronronar do Sabichão. Foi
dos melhores sons da minha infância e ainda agora é o que mais me acalma e
relaxa. Nunca devemos subestimar o valor de um ronrom! Por vezes ele fazia-me
massagens com as suas patinhas. Parecia que estava a amassar pão! Era tão fofo.
Os seus olhos transmitiam uma calma e serenidade como eu nunca vi em outro
animal, quer humano ou não.
Mais tarde vim a descobrir os gostos gastronómicos, nada normais, do
meu gato: gostava de melão, refrigerantes, iogurtes, fiambre, queijo, manteiga,
qualquer tipo de peixe e…muita carne! Numa época em que a informação sobre
gatos era quase inexistente e nem se ouvia falar em rações, eu dava tudo o que
o meu gato queria, e gostava, sem ter a mínima noção que poderia estar a
dar-lhe algo que lhe fazia mal!
Uma das atividades preferidas do Sabichão, e que ainda hoje me
surpreende, era ir buscar-me à escola…sozinho!
Sim, sozinho. Eu estava na primeira classe quando o adotei e nos
primeiros dois anos ele esperava por mim em casa. Embora soubesse exatamente a
hora da minha chegada (devia ter um relógio na barriga, ou será que sabia ver
as horas no sol?!), ficava sentado por trás da portaria (uma enorme porta de
madeira que permitia a entrada para o pátio da casa) à minha espera. Era só vê-lo
rebolar no chão quando me via. É claro que tinha logo que lhe pegar ao colo e
enche-lo de festas. Mas certo dia, estava já eu na terceira classe (o terceiro
ano dos tempos de hoje) quando ao sair da escola, vejo um gato preto sentado no
muro de um pinhal que havia ao lado da escola. Não o reconheci logo mas algo me
alarmou; seria o Sabichão?! Não, não podia ser. A escola ficava a dois quilómetros
de casa e se já não era um percurso fácil para uma criança de oito anos fazer
sozinha , muito mais difícil seria para uma gato de…nem fazia ideia da sua
idade! Vou chegar mais perto…ai! É mesmo o Sabichão! Mas como conseguiu ele vir
até aqui? Como ele descobriu o caminho? Será que me perseguiu pela manhã? E
terá ficado tantas horas à minha espera? As respostas a estas perguntas ele
nunca mas deu e ainda hoje me pergunto como foi possível! Mas o Sabichão era
mesmo sabichão e tinha lá as suas artimanhas para descobrir tudo. Era um
sobrevivente e a sua história de vida era desconhecida para mim.
Durante dois anos assim foi; o gato Sabichão estava todos os dias, à
hora certa, sentado no muro de pedra do pinhal da escola. Não se chegava para
perto do recreio pois acho que ele tinha medo dos outros meninos, mas quando me
via, corria para mim e eu trazia-o ao colo até casa.
Quanto tempo demorava ele a chegar lá e como o fazia eu nunca soube
mas quer estivesse chuva, quer estivesse sol, o Sabichão lá estava. Nos
períodos de fim de semana ou férias, mantinha-mos o nosso segredo: dormia
comigo escondido da restante família.
O Sabichão deixava-me com o coração pequeno, de hora a hora, com os
seus grandes olhos verdes e o seu miuup:
um som muito mais suave do que um miado normal, mas que, mesmo assim, conseguia
excitar sonoramente as fibras do meu coração.
Não consigo lembrar-me de muitas revelações sobre a minha vida
quotidiana que pudessem fazer-me sentir mais à deriva do que se alguém tivesse
encontrado uma forma de medir o QI dos gatos e descobrisse que o Sabichão era
um génio. Ele não se limitava a deixar, alegremente, que o universo girasse à
sua volta, como muitos gatos. Examinava cada molécula dele, intensa e
ansiosamente.
Quando trepava para o meu peito, não esperava meias-medidas. Queria a
minha atenção e devoção totais. Num certo sentido, era ótimo: era, poderíamos
dizer, o mais majestático dos gatos.
Sabichão sempre teve uma vida amorosa muito diversificada mas eram só
casos de umas noites. Embora os gatos pretos, bem à imagem do Sabichão,
tivessem proliferado que nem ratos por toda a região, o seu verdadeiro amor foi
Ritinha.
Ritinha era uma gata com um pelo em tons de cinza e às riscas que nem
uma tigresa. Mas de tigre só tinha o aspeto! O seu nariz era de um castanho
alaranjado e os seus lábios, tal como os olhos pareciam que tinham sido
delineados num tom quase preto. Os olhos eram tão doces e a sua personalidade era
tão calma e afetuosa que fizeram dela a senhora do coração do nosso Sabichão.
Era uma gata muito franzina e delicada, de bons modos e que foi lentamente
entrando em casa como se não quisesse impor a sua presença mas sim ganhar um
pequeno lugar no aconchego do lar.
O Sabichão fez todos os esforços para se dar bem com outros gatos, ao
longo da vida, mas não podia fugir ao facto inevitável de eles estarem
intelectualmente abaixo dele. Teria encontrado finalmente o gato – uma gata,
ainda por cima- com quem ele poderia ter os debates culturais e políticos por
que ansiava tanto? A imagem dos dois sentados na soleira da porta, como um par
de mochos que tudo sabem, era quase inevitável.
Estabeleceram uma ligação próxima e talvez a tenha aceitado como
companheira devido ao facto de Ritinha ter uma deficiência física (não tinha a
patinha dianteira esquerda) e ser uma rejeitada pelos demais. Talvez tivesse
nascido assim, ou tivesse sido atropelada ainda jovem, ou… não sei! Já a
conheci assim!
Cheguei a vê-lo saltar sobre ela, como um gatinho, sem duvida numa
tentativa de a incitar à brincadeira. Dormiam juntos em caixas de papelão que
encontrassem vazias e qualquer bola de
papel enroscado servia como brinquedo para horas de folia.
Foram muito felizes juntos, percorrendo os campos em busca de
toupeiras, grilos e outros bicharocos que adoravam caçar. Muitas vezes fui
presenteada com alguns cadáveres de caça, na soleira da porta. Eu sei que me
ofereciam como recompensa do aconchego e alimento que lhes proporcionava mas
cadáveres de animais…blaaaar!
Certo dia, Ritinha subiu a uma arvore e depois de estar bem no alto,
não conseguia descer. Talvez por medo, ou talvez, por limitações motoras, ela
ficou bem na ponta de um ramo da arvore que era quase impossível de alcançar
por um humano.
Desde escadas (que não me conseguiam levar até ao sitio onde Ritinha estava!),
até a oferta de guloseimas como forma a incentiva-la a descer sozinha, nada
resolveu o problema. Depois de horas em cima da arvore e com a noite quase a
chegar, entrei em pânico sem saber o que fazer. Era um dia de inverno e se a
gatinha passasse a noite em cima da arvore iria pela certa ficar muito doente
ou até talvez não sobreviver. A única hipótese seria chamar os bombeiros para
que com as suas enormes escadas alcançassem a Ritinha. Mas quando telefonei
para os bombeiros riram-se de mim e disseram que não se iriam deslocar para
tirar um gato de uma arvore, nem que lhes pagassem!
Horas e horas de dilema, choro e pânico e a noite estava cada vez mais
próxima!
Durante todo este tempo, Sabichão observava o meu desespero e
ansiedade sem qualquer reação. Mantinha-se sentado de frente para a arvore sem
nada fazer.
Pedi ajuda ao meu pai e aos vizinhos e já uma pequena multidão estava
debaixo da arvore.
Os palpites eram mais que muitos: “Ela vai cair.”, “ Se passa aí a
noite acaba por morrer.” , ”Não vai conseguir descer sozinha, falta-lhe a pata
para se segurar!”…
Mas a noite não esperou e a escuridão começou a tornar aquilo que era
difícil em algo impossível. Ritinha nunca se conseguiria salvar!
Jurei que passaria a noite ali debaixo da arvore, que não a deixaria
sozinha e tive um apoiante; Sabichão. Ele ficou comigo, debaixo da arvore e com
as temperaturas a baixar vertiginosamente durante horas.
Eram quase vinte e duas horas quando, com toda a sua calma e
sapiência, Sabichão decidiu escalar a arvore e percorrer o fino ramo até chegar
a Ritinha. Por momentos pensei que o ramo não iria aguentar com o peso de
ambos e que fossem cair, mas o milagre
aconteceu!
Sabichão murmurou uns sons quase impercetíveis para os meus ouvidos e
lentamente , de uma forma quase teatral, começou a descer a arvore. Atrás dele,
seguia-se Ritinha que repetia todos os seus gestos como se de um espelho se
tratasse. Em poucos segundos ambos estavam no chão; sãos e salvos. Levei-os
para dentro de casa pois o frio cá fora já era quase insuportável.
Mais uma vez, o gato Sabichão era o meu herói. Nada, nem ninguém,
merecia tanto a minha admiração.
A presença de Ritinha na vida de Sabichão foi excecionalmente
marcante. Nunca tiveram filhos, talvez porque , penso eu, Ritinha seria estéril.
Quando terminei a escola primária, já o Sabichão tinha sido “atacado”
pelos reflexos brancos no seu magnifico
pelo preto, e este já não era tão brilhante como outrora.
Nas nossas brincadeiras chamava-lhe Merlin pois o sabichão estava com
barbas brancas. Ele nunca se importou e só queria um colo quentinho!
Os tempos e as mentalidades mudaram e o velhinho começou a ter
autorização para viver dentro de casa. As suas artroses já não permitiam
grandes caminhadas e passava quase o tempo todo a dormir. Cansado e velho mas
sempre atento à sua dona que tanto o estimava.
Quando dormia ao meu colo, ronronava tão alto que eu tinha que
aumentar o volume da televisão para conseguir ver os desenhos animados. Nesses
momentos eu tentava imaginar a vida do Sabichão antes de ter chegado a minha
casa. Penso que deve ter sido uma vida difícil pois era um mendigo sem casa ou
comida. Quantas das suas sete vidas já teria perdido?
Nas suas orelhas podiam ver-se alguns golpes cicatrizados de antigas
lutas de gatos. Pareciam um pouco como se tivessem sido ratadas por um grande
coelho que as tivesse confundido com um par de pequenas folhas de alface preta,
mas, apesar de os seus olhos serem impossivelmente tristes, também eram
brilhantes e o seu pelo era muito mais sedoso do que quando o encontrei pela
primeira vez. Não tenho duvida que ganhou todas as lutas e conquistou muitas
gatas. Era um belo exemplar da espécie
felina. Grande, forte, não gordo mas musculado. Agora era um rei no nosso mundo,
por vezes tão secreto.
Quando adotei o Sabichão, já ele me parecera um animal com um passado
sombrio que viveu diversas vidas. E agora estava ali, ainda a meu lado. Nenhum
ser vivo passara mais tempo na minha companhia desde então e tenho a certeza de
que ele poderia dizer-me muito mais sobre mim, e como mudara, do que eu
própria. Por vezes, levantava os olhos dos meus trabalhos de casa e
encontrava-o a olhar-me interrogativamente e perguntava-me há quanto tempo ele
se encontrava ali sentado.
O Sabichão tivera sempre uma postura perfeita, quase de balé, que
contrariava os seus ossos velhos. Nunca fora um gato mandrião ou desmazelado,
mas, quando me avaliava, sentava-se quase sempre de uma forma particularmente
atenta, com as costas direitas, as patas meticulosamente dispostas à sua
frente, como se não se limitasse a estar a olhar na minha direção, mas achasse
que estava a realizar uma tarefa e tencionasse faze-la bem.
Penso que ele passou a vida a recolher dados sobre a fraqueza humana.
Vira-me crescer e testemunhara as minhas más decisões e as boas também.
Conhecia-me melhor que ninguém e tenho a sensação de que ele me teria dado bons
conselhos se tivesse a capacidade de falar. Poderia, inclusive, ter sido capaz
de me dizer o meu futuro, mas não acho que quisesse faze-lo, porque isso iria
anular o objetivo e minar o valor da vida.
A minha relação com o Sabichão era única: não se tratava tanto de um
vínculo com um gato como do tipo de ligação que poderia ter com um amigo mudo
mas sim de sentir duas vezes cada emoção de uma forma aguda.
Cada vez que eu estava triste era ele que me consolava com lambidelas,
ronrons e torrinhas. Nem precisava de
chorar pois ele sentia o que me ia na alma e o meu olhar era o suficiente para
despertar no Sabichão todo o tipo de reações de carinho.
O Sabichão foi sempre de uma lealdade indiscritível. Tenho a certeza
que ele percebeu que fui eu que o tirei das ruas e da fome, e toda a sua vida
foi-me grato.
Quando ele chegava ferido das lutas com outros gatos, eu
desinfetava-lhe as feridas com uma solução de iodo. Ele detestava mas acabava
por permitir os curativos pois sabia que era importante para ele e que mais
tarde iria sentir-se melhor.
Acabou por ganhar um ódio de morte à solução de iodo e mal via o
frasco já fugia.
Aos meus onze anos o meu pai teve um acidente de carro e acabei por
ficar com vários ferimentos que embora superficiais precisavam de curativos
constantes.
A minha mãe desinfetava-me os cortes e arranhões da pele com a solução
de iodo e tudo correu maravilhosamente até que durante um dos curativos, o
Sabichão entrou no quarto. Quando viu o frasco da solução de iodo entrou em
estado de pânico e a situação piorou imenso quando se apercebeu que me estavam
a colocar aquilo na pele! O choque foi tal que eriçou o pelo, encurvou as
costas, esticou as orelhas para trás e
começou a rosnar para a minha mãe. Ela continuou o curativo e sem se aperceber
do estado do gato.
Não associei de imediato o facto de ele pensar que a minha mãe me
estava a magoar e nunca me passou pela cabeça que ele pudesse vir realmente a
atacar, mas assim foi. Num salto maior do que eu supunha que ele conseguiria
dar, aterrou no braço da minha mãe com
unhas e dentes e só parou de morder quando a minha mãe largou o frasco da
solução de iodo.
O braço dela ficou bem feio e precisou de cuidados profissionais mas
mesmo assim o Sabichão
não foi castigado pois tínhamos consciência que ele só o fez para me
proteger; sabíamos que ele associava o frasco da solução de iodo à dor e o que
aconteceu foi inevitável.
Um dia estranhei o Sabichão não estar em casa e comecei a ficar
preocupada quando não voltou para casa à noite. No dia seguinte também não
apareceu! Comecei a procurar por todo o lado pois sabia que ele já não teria
muito tempo de vida. As minhas buscas foram em vão. Nunca mais encontrei o
Sabichão. Ele quis que eu tivesse boas lembranças dele e não me deixou ver o
seu fim. Ainda hoje sonho que o Sabichão vai voltar para mim, como D. Sebastião
vindo com o nevoeiro. Não era um gato castrado, por isso deve ter tido muitos
descendentes por aí mas nunca encontrei outro como ele. Três décadas depois e muitos,
e muitos, gatos depois, escrevo esta história para que todos percebam como é
maravilhoso ter um amigo de carne e osso, e muito pelo. O Sabichão mudou para
sempre a minha vida!
É pena que não haja fotografias do meu querido Sabichão mas jamais o
esquecerei. Quem sabe se um dia gravarei permanentemente na minha pele a sua
imagem e ficará para sempre comigo?
Não há menor duvida de que merece um tributo com alguma permanência,
porque foi um bom amigo, uma tão grande inspiração: um gato que aguentou as
coisas duras da vida.
Talvez ele tenha passado por uma fase em que teve a capacidade de ser
um pouco arrogante e indiferente, ou talvez os seus olhos tenham visto
demasiado cedo para que isso fosse possível e depois tenha continuado a ver
mais. Pergunto-me se , caso ele tivesse tido a oportunidade de fazer tudo de
novo, de um modo diferente, se a teria aproveitado. Talvez não. Sim, poderia
ser mais novo, e não ter cicatrizes. Poderia ter a confiança para subir a uma
arvore a grande velocidade ou arrancar a cara de uma ratazana. E isso seria ótimo
para ele, sob muitos aspetos. Mas que sabedoria perderia ao fazê-lo? Que
enigma, que estratos? Seria tão caloroso e tão interessante para ter por perto?
E - ainda mais fundamental - poderia continuar a dizer que era ,
verdadeiramente , O gato Sabichão?
Diz-se por aí que há um lado do céu que se chama a Ponte do Arco-íris
e que quando os animais que foram muito próximos de alguém morrem, vão para lá.
Há campos e colinas para que todos os animais nossos amigos possam
correr e brincar e não falta comida ou água, nem sol. Todos os animais que
estiveram doentes e velhos reencontram a saúde e o vigor. Aqueles que sofreram
acidentes ou foram mutilados estão inteiros e fortes novamente, tal como os
relembramos quando sonhamos com os dias passados.
No entanto há um pequeno senão que impede que sejam totalmente felizes.
Sentem uma grande saudade de alguém muito especial que deixaram para trás.
Todos correm e brincam juntos mas chega o dia em que um deles
subitamente pára e olha para longe. Os seus olhos brilhantes estão fixos, o seu
corpo treme de ansiedade e começa a correr, afastando-se do grupo e voando
sobre a relva verde.
O dono foi reconhecido e , quando o dono e o seu amigo especial
finalmente se encontram, a alegria é imensa, prometendo um ao outro que nunca
mais se separarão. Então, os dois atravessam a Ponte do Arco-íris.
Sei que o Sabichão está à minha espera e um dia eu pegarei nele ao
colo e, como naqueles tempos em que ele ia buscar-me à escola, vamos atravessar
juntos a ponte do Arco-íris.
Maria Irene Reis e o gato Sabichão
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